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Por Que a Gastronomia Funciona Como Âncora Turística

A evolução do turismo é paradoxal, na medida em que gera simultaneamente processos de mundialização e de valorização de culturas locais. Neste contexto, o desenho de experiências turísticas integra elementos ligados à emoção e psicologia, a intuição, compromisso social e interações sensoriais, que são determinantes para a competitividade do destino.

A gastronomia se consolidou como um dos principais passaportes para iniciar uma aproximação com culturas locais, pois é uma das manifestações culturais mais importantes do ser humano e se conecta a valores territoriais clássicos que são matéria prima para o turismo, como: paisagem, patrimônio, cultura, autenticidade e produção local, por exemplo.

Ela  resolve três desafios fundamentais do turismo contemporâneo: autenticidade, experiência e diferenciação. Diferente de atrativos físicos que podem ser replicados, a combinação entre ingredientes locais, técnicas tradicionais e narrativa cultural cria identidade única, impossível de copiar.

Os números comprovam: segundo a ONU Turismo, o turismo gastronômico movimenta 150 bilhões de dólares por ano. Experiências gastronômicas aumentam o tempo de permanência dos turistas, elevam o gasto médio per capita e criam motivação específica de viagem. Mais importante: geram impacto econômico distribuído, beneficiando desde produtores rurais até restaurantes urbanos.

 

Leia também:
Turismo de experiência: o que move o viajante contemporâneo?

 

Restaurante Ostradamus (SC). Foto: Embratur.

Case 1: Ostradamus – Quando a Inovação Técnica Cria Demanda

O Contexto e a Transformação

No Ribeirão da Ilha, região sul de Florianópolis conhecida como “capital brasileira da ostra”, Jaime José Barcelos protagonizou uma transformação que exemplifica como a visão empreendedora pode criar um diferencial competitivo sustentável. Em 1996, sua oficina mecânica deu lugar ao que viria a ser o primeiro sistema de depuração de ostras do Brasil.

A Inovação Técnica Como Barreira Competitiva

O sistema de depuração não era apenas diferenciação – era necessidade. Barcelos identificou que a qualidade sanitária das ostras brasileiras limitava as possibilidades gastronômicas. Investindo em tecnologia de depuração, conseguiu garantir qualidade superior que permite 14 preparações diferentes do molusco, desde ostras cruas até gratinadas e empanadas.

A inovação gerou produção anual de 70 mil dúzias de ostras, posicionando o Ostradamus como referência nacional. Mais que números: criou conhecimento técnico que virou vantagem competitiva intransferível.

Infraestrutura Experiencial Diferenciada

O restaurante vende experiência completa. A estrutura inclui:

  • Aquário de ostras vivas na entrada: permite ao cliente escolher o produto 
  • Cozinha em vidro: transparência total do processo de preparo 
  • Trapiche sobre a Lagoa da Conceição: refeições com vista panorâmica da baía 
  • Adega climatizada abaixo do nível do mar: diferencial para harmonização 

Um dos melhores do Brasil

O impacto vai além do faturamento. O Ostradamus conquistou a 65ª posição entre 2.484 restaurantes de Florianópolis no TripAdvisor e foi eleito um dos 100 melhores restaurantes do Brasil pela revista Exame em 2023.

Mais importante: turistas chegam a Florianópolis especificamente para conhecer o restaurante, demonstrando como a diferenciação gastronômica pode funcionar como âncora turística primária, não complementar.

Recanto da Zezé (MG). Foto: Divulgação.

Case 2: Recanto da Zezé – Autenticidade Estruturada

O Projeto de Desenvolvimento Territorial

O Recanto da Zezé não é iniciativa isolada. Integra o Projeto de Desenvolvimento Integrado do Turismo Beira Rio e Três Marias, realizado pelo Instituto Votorantim e Nexa e executado pela Turismo 360 Consultoria entre 2018 e 2024. Este contexto é fundamental: mostra como experiências gastronômicas familiares podem ser potencializadas através de articulação territorial estruturada.

 

Conheça mais sobre o projeto realizado pela Turismo 360 aqui

 

Como Funciona a Experiência

Dona Zezé, viúva e mãe de três filhas, criou roteiro de 7 horas que combina:

Café da manhã (2h): cafezinho mineiro, leite tirado da vaca no dia, queijo fresco, biscoitos assados na hora – tudo em ambiente rústico onde a casa é feita de adobe e teto de palha.

Caminhada na natureza (2h): trilha até a Cachoeira das Palmeiras com banho refrescante no Córrego Grande.

Almoço tradicional (3h): preparado no fogão à lenha com produtos da horta familiar, servido em panelas de barro.

Modelo de Negócio Sustentável

Investimento de R$85 por pessoa com capacidade controlada de até 10 visitantes por dia. Esta limitação não é acidental: mantém a experiência autêntica, garante qualidade do atendimento e preserva o caráter familiar do negócio.

O Papel da Consultoria Especializada

O projeto demonstra como a consultoria estruturada pode potencializar iniciativas familiares sem descaracterizá-las. Durante os seis anos de implementação, o território recebeu:

  • Qualificação da oferta turística 
  • Fortalecimento da gestão coletiva 
  • Desenvolvimento de estratégias integradas de promoção 
  • Diversificação da oferta regional 

Resultado: diversificação da oferta, maior protagonismo dos empreendedores locais e ampliação das estratégias de comercialização dos serviços turísticos.

Barra de São Miguel (AL). Foto: Embratur.

Case 3: Palatéia – Cooperativismo Gastronômico em Escala

A Estrutura Cooperativa

Na Barra de São Miguel, Alagoas, 120 famílias desenvolveram modelo cooperativo que se tornou a maior produção de ostras do estado. Este não é apenas empreendedorismo individual – é economia solidária aplicada ao turismo gastronômico.

Diversificação Produtiva Inteligente

A Palatéia desenvolveu três linhas produtivas integradas:

  • Ostras nativas: produto principal, cultivadas nos mangues locais 
  • Mel tradicional: produção familiar complementar 
  • Própolis vermelha: diferencial único, objeto de estudos científicos internacionais 

Esta diversificação fortalece a resiliência econômica da comunidade e oferece experiências gastronômicas únicas, como ostras servidas com mel local.

A Experiência Educativa Completa

Os turistas consomem, participam e aprendem. O roteiro inclui:

  • Navegação pelos canais do mangue: compreensão do ecossistema 
  • Visita aos criatórios: aprendizado sobre as três espécies de mangue (preto, vermelho e branco) 
  • Participação no processo de cultivo: desde a coleta até o preparo 
  • Degustação técnica: ostras preparadas na hora com explicação sobre qualidade e origem

Equipe do Programa Prepara Gastronomia (Sebrae Minas). Foto: Divulgação.

Case 4: Programa Prepara Gastronomia – Estratégia Sistêmica de Desenvolvimento

Metodologia de Impacto Escalonado

O Sebrae Minas desenvolveu abordagem sistêmica que vai além da capacitação pontual. O Programa Prepara Gastronomia combina:

  • Consultorias customizadas: diagnóstico específico de cada empreendimento 
  • Capacitações especializadas: conteúdo técnico voltado para negócios de alimentação fora do lar 
  • Eventos de articulação comercial: rodadas de negócios que conectam diferentes elos da cadeia 

Números que Comprovam Eficácia

Na edição 2025, foram realizadas 446 agendas comerciais durante a Rodada de Negócios, gerando expectativa de R$11,7 milhões em negócios. O programa beneficia diretamente cerca de 1.000 empreendimentos e atrai aproximadamente 15.000 participantes anualmente para eventos e capacitações.

Democratização do Conhecimento

O programa desenvolveu o curso “Turismo Gastronômico” na plataforma Sebrae Play, disponível gratuitamente para empreendedores de todo o país. O conteúdo aborda:

  • Valorização de ingredientes locais 
  • Fortalecimento da identidade gastronômica regional 
  • Desenvolvimento de experiências que encantam clientes 

Articulação de Cadeia Produtiva

A estratégia de parcerias é fundamental: o programa articula pequenos empreendedores com grandes fornecedores, criando condições comerciais mais competitivas e acesso a inovações tecnológicas. Esta abordagem sistêmica multiplica o impacto das experiências gastronômicas individuais, criando um ecossistema regional fortalecido.

 

Rota dos Pescados (AL). Foto: Divulgação.

Case 5: O Poder da Press Trip Gastronômica – Rota dos Pescados

Metodologia de Intercâmbio Estratégico

A Rota dos Pescados em Alagoas demonstra como press trips especializadas podem multiplicar investimentos em marketing gastronômico. Realizada entre 26 e 30 de agosto de 2025, conecta chefs renomados com produtores locais através de formato inovador de intercâmbio gastronômico.

Estrutura da Press Trip

Cada noite acontece em restaurante diferente, percorrendo:

  • São Miguel dos Milagres: foco em frutos do mar tradicionais 
  • Maceió: gastronomia urbana contemporânea 
  • Piranhas: ingredientes e técnicas do sertão alagoano 

Os chefs participantes incluem Kaywa Hilton (Bahia), Lucas Nogueira (Milagres) e Gustavo Rinkevich (Rio de Janeiro), garantindo alcance geográfico e diversidade técnica.

Impacto Duradouro

O diferencial está na continuidade: os pratos criados especialmente para o evento passam a integrar os cardápios fixos dos estabelecimentos, garantindo que a valorização da gastronomia local continue além do período da press trip.

Mais importante: cria relacionamentos comerciais duradouros entre diferentes elos da cadeia gastronômica. Chefs mantêm o fornecimento de produtores locais, ampliando mercado e distribuindo renda.

 

Como Aplicar Esses Insights no Seu Território

  • Passo 1: Diagnóstico Gastronômico Territorial

O ponto de partida para desenvolver o turismo gastronômico em qualquer destino é o diagnóstico territorial. É fundamental mapear produtores locais que apresentam diferenciais técnicos, culturais ou históricos, pois são eles que trazem autenticidade e identidade à experiência. Além disso, identificar técnicas tradicionais que possam ser transformadas em experiências turísticas é essencial para agregar valor à oferta e criar produtos únicos. Junto a esse mapeamento, a avaliação da infraestrutura existente e das necessidades de investimento ajuda a visualizar o potencial real do território. Por fim, analisar a demanda turística atual e o potencial de crescimento permite direcionar as estratégias de acordo com o perfil do público e os objetivos do destino.

  • Passo 2: Definição de Modelo de Negócio

Na etapa seguinte, é hora de definir o modelo de negócio. O turismo de base comunitária, como exemplificado pelo Recanto da Zezé, demanda baixo investimento e aposta fortemente na autenticidade como diferencial. Já o cooperativismo gastronômico, como ocorre na comunidade de Palateia, possibilita a redução de riscos e o aumento da capacidade de investimento por meio da articulação coletiva. Para destinos que possuem estrutura robusta e potencial para experiências com maior apelo de sofisticação, o investimento em infraestrutura e diferenciação técnica são caminhos indicados, a exemplo do Ostradamus em Florianópolis. E, para quem deseja escalar o impacto e integrar diferentes iniciativas, o modelo de estratégia sistêmica, promovido por programas de desenvolvimento territorial como o do Sebrae, entra como alternativa de maior alcance regional.

  • Passo 3: Estruturação Profissional da Experiência

Com o modelo definido, chega o momento de estruturar profissionalmente as experiências. Criar roteiros bem desenhados, com início, meio e fim claros, facilita a operacionalização e entrega ao visitante. A precificação deve ser estabelecida com clareza e diretamente relacionada ao valor agregado da vivência. É essencial garantir uma capacidade de atendimento sustentável, respeitando limites e mantendo a qualidade percebida ao longo do tempo. A infraestrutura deve estar alinhada ao posicionamento escolhido, seja para uma experiência rústica e intimista ou para uma vivência sofisticada e ampla.

  • Passo 4: Articulação e Amplificação

Por fim, nenhum projeto atinge o máximo potencial sozinho. O sucesso depende de uma articulação bem feita, conectando experiências individuais em uma programação territorial integrada e desenhando parcerias estratégicas com agências, guias e outros empreendimentos do setor. Investir em capacitação contínua dos envolvidos é indispensável para manter inovação e qualidade. E, para amplificar os resultados e garantir visibilidade, vale estruturar ações de marketing direcionadas, com destaque para press trips especializadas que podem atrair cobertura qualificada e promover o destino junto a públicos segmentados e influentes.

Mané Mercado (BSB). Foto: Embratur.

O Verdadeiro Poder da Gastronomia

A gastronomia se consolidou como uma das principais motivações de viagem em todo o mundo. Destinos turísticos, no Brasil e fora dele, estão renovando suas estratégias de desenvolvimento e marketing ao escutar consumidores e fortalecer experiências de turismo gastronômico.

O desafio está em estruturar experiências que transformem visitantes ocasionais em promotores apaixonados pelo território. Isso depende da capacidade de identificar, valorizar e promover aquilo que torna cada lugar único — e de oferecer essa singularidade de forma inesquecível.

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Marcela Pimenta

Mineira que mora em Alagoas, mãe do Theo e da Lara, apaixonada pelo turismo desde sempre. Fica muito feliz todas as vezes que seu trabalho impacta positivamente a vida das pessoas. É fundadora da Turismo 360 junto com três sócios que são amigos, parceiros e profissionais admiráveis. É cofundadora do Turismo Spot. Sobre o Turismo Spot: "Representa o desafio de produzir conteúdo técnico de maneira leve, mas ao mesmo tempo eficiente e útil para os profissionais, gestores e empresários de turismo! Tenho muito orgulho de fazer parte desse hub de conteúdo técnico sobre turismo"