Aterrizando de uma viagem a Belém do Pará, suas imediações e à Ilha do Marajó, ainda estou imersa nas riquezas que vi: cacau de diferentes espécies cultivado em sistema agroflorestal, açaí silvestre, peixes nativos, mel de abelhas sem ferrão, castanhas, plantas utilizadas em inúmeros fitoterápicos e cosméticos.
O que é sociobioeconomia
Este rol de produtos originais do Brasil é frequentemente apontado como estruturante da Bioeconomia a da Sociobioeconomia. Ainda em construção do ponto de vista acadêmico, consigo atrelar os conceitos a riquezas que respeitam a lógica de “pisar suavemente sobre a terra”, em referência ao grande Krenak (2020, 2021) e, em oposição àquela produção que esgota a natureza: mineração, extração de petróleo, indústria automotiva, grandes obras civis, etc.
Saberes tradicionais e modos de vida
Especialmente no segundo conceito, quando ressaltamos o lado “social”, as populações tradicionais e seus conhecimentos estão no cerne das perguntas e das respostas. Na minha imersão recente em solos e, sobretudo em águas paraenses, pude ver de perto essas comunidades que detêm imenso conhecimento e pouca valorização. Pessoas que há mais de 50 anos vivem junto com a natureza, extraindo e cultivando aquilo que ela pode dar, nomeando as coisas e agindo de acordo com os ciclos das marés, das chuvas, da terra. Essas pessoas não me falaram em bioeconomia em nenhuma das conversas, mas ela estava ali.
Experiências reais na Amazônia paraense
Seu Ladi me contou do tempo que passava na extração do açaí, do cupuaçu e das castanhas que vendia no mercado Ver-o-Peso. Agora, as pessoas vêm visitá-lo para ver seu pedaço de terra e ele ensina o que sabe, caminhando de pé descalço na mata.
Dona Alcinda me relatou que vive ali na comunidade ribeirinha de Boa Vista do Acará desde menina e que criou 10 filhos a partir da produção e venda de farinha artesanal – o que ela fez antes mesmo de aprender a escrever seu nome, aos 54 anos. Hoje já não tem o mesmo vigor físico, então se dedica a ensinar o que pode e se alegra de ver pessoas de fora.
Débora, uma jovem ribeirinha que agora é estudante de Arquitetura em Belém, é a anfitriã que recebe com orgulho e dedicação, dentro da escala feita pela comunidade, grupos de até 10 visitantes que enveredam para dentro da ilha. Ela vai revelando uma ponte entre aquele mundo e a capital, no seu ir e vir de estudante entusiasmada. Ela nos relata que o dinheiro do turismo ajudou a reformar a escola local.
Seu Carlos, conta que há 25 anos vende ervas medicinais e garrafadas no mercado na capital, mas que agora boa parte de seus ganhos vêm da produção da sua horta e do quinhão comunitário, que vende para uma grande empresa de cosméticos, junto com a renda dos banhos de cheiro feitos com mais de 20 tipos de ervas na beira do igarapé, que prepara para os visitantes da comunidade.
A estratégia brasileira de bioeconomia
O Brasil avança ao criar a agenda de Bioeconomia dentro da estrutura do Ministério de Meio Ambiente e Mudanças do Clima. Avança ainda mais ao desenhar uma Estratégia Nacional de Bioeconomia (DECRETO Nº 12.044, DE 5 DE JUNHO DE 2024) com diretrizes e objetivos que buscam, em conjunto, estimular uma visão que acopla justiça social e riscos climáticos à economia baseada no uso sustentável da biodiversidade ao lado de grupos locais. A estratégia está sendo desdobrada em planos que elencam setores incontestavelmente importantes para articulação política: agricultura, pesca, ciência e tecnologia…
O turismo ainda está fora do centro da agenda
Infelizmente, o Turismo ainda não conquistou lugar de destaque, apesar de ser começar a ser reconhecido entre as cadeias valor de “produtos de qualidade (especiais), de maior valor agregado e menor volume de produção” (Trindade e Mendes, 2024, p.67). Isso quando estimula a experiência, o contato com as populações locais, seus saberes, distribui renda e promove a real experiência de imersão.
Por que o turismo deve integrar a sociobioeconomia
As políticas setoriais de Turismo podem e precisam marcar lugar como alternativa viável para a Bioeconomia. Obviamente não serve qualquer Turismo. Um que seja predatório, em larga escala, sem governança, sem compromisso com os produtores, não pode entrar, muito menos ficar. O Turismo – feito de forma responsável e comprometida com a sustentabilidade – deveria contar com lugar reservado na Bioeconomia por 4 razões:
- traz o visitante para o território, diferentemente de todas as demais cadeias produtivas da Bioeconomia, que levam o produto e o produtor – via de regra em longos trajetos – até o mercado externo (seja ele um grande centro nacional ou internacional). No caso do Turismo, o turista que vem viver o território: ainda que saibamos que nem sempre isso resultou nas melhorias de saneamento, educação, saúde em um modelo ultrapassado, pode consistir em um estímulo para investimentos;
- a prática turística favorece outras cadeias e pode puxá-las: o artesanato, os produtos alimentares (peixes, frutas, entre outros), as tradições culturais e o saber fazer, podem ser estimulados pelo consumo do turista que visita o local, com maior poder aquisitivo e potencial de transbordamento para outras cadeias da Bioeconomia com suas atividades de comer, dormir, se divertir, aprender;
- os recursos gerados pelo Turismo, assim como o fluxo de pessoas, pode gerar financiamento de práticas regenerativas junto consigo. Já temos notícias de experiências exitosas que trazem o turista para cuidar de animais em risco de extinção (como onças e araras azuis no Pantanal), para reflorestar corais em Porto de Galinhas, para plantar árvores de Breu na Amazônia durante suas visitas de tours aromáticos;
- o turismo valoriza o diferente, o que abre espaço para diálogos, trocas, conhecimentos e narrativas dos povos tradicionais que deveriam ser protagonistas da experiência. E ainda permite que este visitante crie um vínculo especial e esclarecido com uma nova realidade como a de um quilombo, de uma comunidade ribeirinha ou apenas de um grupo social que ele desconhecia. Pude ver que também permite dar voz e incluir pessoas como o Seu Ladi e a Dona Alcinda, anciãos que não apresentam mais o vigor para o trabalho árduo na roça, mas que são grandes contadores de histórias para visitantes, fazendo um trânsito intergeracional.
O Turismo pode dar liga entre as partes. Porém, como qualquer outra cadeia dentre os mais de 900 produtos já mapeados pelo potencial na Bioeconomia – precisa ser compreendido em seus processos, seus fornecedores, seus distribuidores, como alcançar mercados, como precificar, como aprimorar a qualidade e como distribuir seus benefícios de forma responsável e ética com as populações – que devem dizer o que querem apresentar a quem os visita.
Hora de marcar presença
O Turismo bem feito tem um forte potencial para ser vetor da Bioeconomia que queremos. Porém, para florescer, precisa de ações para aplacar sua frágil governança, sua iniciante e informal teia de produção, assim como a escassez e a temporalidade de seus investimentos.
Referências
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo (Nova edição). Cia das Letras: São Paulo, 2020.
______. Futuro ancestral. Cia das Letras: São Paulo, 2022.
MARCOVITCH, Jacques; VAL, Adalberto. Bioeconomia para quem? bases para um desenvolvimento sustentável na Amazônia. Universidade de São Paulo. Escola de Comunicações e Artes, 2024. Disponível em: www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/1337. Acesso em 26 junho. 2025.
VARELLA, Dráuzio. O Sentido das Águas: histórias do Rio Negro. Cia das Letras: São Paulo, 2025.
Leitura complementar
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/decreto/d12044.htm