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O turismo nunca foi simples e prático de gerir. Embora a complexidade, interdependência e interdisciplinaridade sejam características da “personalidade” do turismo, na prática, isso não é tão óbvio e fácil de lidar. Ainda é comum observar em diversos destinos, o velho discurso e paradigma um tanto ingênuo de que este é um setor inerentemente bom para os territórios, instituições e pessoas, e, de simples gestão. 

O orçamento é pífio na maioria das vezes e foi necessária uma pandemia (ou não) para que toda uma nação entendesse que, sim, o turismo é um setor econômico extremamente significativo para o país e para o mundo, que exige recursos humanos, financeiros e materiais para ser planejado e gerido.

Esta realidade não é exclusiva do nosso país. Destinos com níveis de desenvolvimento mais avançados começaram a sofrer uma intensa massificação do turismo (o chamado overtourism) nos anos 2000, o que pode nos dar alguma visão de futuro e nos remetem ao passado já vivido com o crescimento exponencial do turismo nas décadas de 80 e 90. Com isso, principalmente nos últimos 5 anos, houve o reconhecimento mundial de que seria necessário melhorar a gestão de destinos turísticos urgentemente. Muitos territórios estariam experimentando ou em vias de experimentar impactos extremamente negativos e até mesmo irreversíveis. 

Destinos como a Ilha de Komodo na Indonésia, e a ilha de Ilha de Boracay nas Filipinas fecharam por temporadas inteiras em 2018 e 2019, para tentar recuperar-se do alto impacto de visitação. Além destes, já bem registrados estão os casos de Barcelona e Veneza, em documentários sobre o alto impacto do turismo na qualidade de vida dos moradores, tornando basicamente impraticável a coexistência entre turistas e habitantes.

Alertas sobre a importância de lidar com a teoria da complexidade e do caos vem sendo incentivadas no âmbito da gestão de destinos desde as primeiras discussões sobre sustentabilidade no turismo na década de 90. Acontecimentos críticos dos anos 2000 como tsunamis, doenças, terrorismo, e, especialmente a crise econômica da bolha imobiliária vivida em 2008 – considerada uma das piores crises do século XXI e que afetou o setor de modo global, sem precedentes – impulsionaram em grande parte a discussão sobre gestão de crises e desastres no turismo. 

A partir dos anos 2018, a Organização Mundial do Turismo passou a sugerir que fossem incorporadas reflexões sobre padrões de produção e consumo responsáveis em políticas públicas e a instituição Travel Foundation, em parceria com o Centro para a Sustentabilidade Global de Empresas da Universidade Cornell e a empresa EplerWood International publicou um estudo sobre a “carga invisível do turismo”, destacando os inúmeros riscos em função de custos não contabilizados ou geridos em decorrência da atividade turística nos destinos.

A pandemia causada pela Covid-19 que teve início em 2020, um evento extremo e imprevisível, e a pauta mais do que urgente relacionada às mudanças climáticas reforçada na COP 26 de 2021, reforçaram as preocupações: estamos encarando o turismo como um sistema complexo, que deve se adaptar de modo constante? Estamos cientes das vulnerabilidades e riscos que afetam a atividade, sejam elas causadas por crises ou desastres de diversas ordens? Temos conhecimento técnico e emocional para reconhecer que vivemos em um mundo de rápidas mudanças, que podem mudar completamente a forma como nos conectamos e fazemos turismo? Estamos preparados para gerir isso?

É urgente reconhecer que o futuro do turismo depende da habilidade da gestão pública, empresas, e demais instituições ligadas ao setor em medir e gerenciar os custos completos da atividade e conhecer profundamente os impactos do setor. Ou seja, é necessário mudar de um modelo de monitoramento e planejamento restrito à alguns indicadores de impacto econômico da atividade para um sistema que seja capaz de compreender os impactos acumulados e com isso avaliar a saúde do destino turístico, subsidiando decisões em um processo adaptativo e orientado para a resiliência.

Países que são assolados por desastres naturais e crises constantes, como é o caso do Japão, Austrália, destinos turísticos do Caribe, entre outros, obrigatoriamente tiveram que se orientar para uma gestão altamente especializada e preventiva, baseada em conhecimento e gestão de uma grande quantidade de dados e informações, em tempo real. Devido aos enormes desafios que enfrentam, são exemplos em liderança, colaboração, gestão baseada no conhecimento e resiliência no turismo, ou seja, desenvolveram a capacidade de se recuperar e crescer durante eventos adversos. 

Embora o Brasil não seja assolado por situações da magnitude dos países exemplificados, estamos bastante acostumados a vivenciar crises econômicas, políticas e riscos inerentes a áreas ambientalmente e socialmente frágeis e vulneráveis – onde o turismo tende a ocorrer como uma fonte de desenvolvimento alternativa a outros modelos econômicos. A título de exemplo, desde 2014, o Brasil vivencia situações de impacto significativo no turismo, que inclusive poderiam nos ter auxiliado a lidar melhor com crises e desastres, como:

  • A crise política do Brasil decorrente do processo de combate à corrupção que culminou na Operação Lava Jato em 2014 e o impeachment da Presidenta Dilma Rouseff em 2015 abalaram a estrutura institucional de todo o país, influenciando diretamente o Ministério do Turismo – somente em 2016, seis ministros diferentes passaram pela instituição. Isso afeta a crença das instituições do setor e reduz sua participação nas políticas públicas do país. 
  • A realização de megaeventos esportivos internacionais: apesar de ter sediado a copa do mundo em 1950, pela primeira vez o Brasil sediou eventos que exigiram um planejamento articulado do turismo, considerando matrizes de risco e o fortalecimento das capacidades institucionais para gerir grandes multidões e lidar com as situações de risco mapeadas. Isso ocorreu como protocolo exigido para sediar a Copa Mundial Fifa em 2014 e as Olimpíadas Rio 2016.
  • Ocorrência de desastres que afetaram destinos turísticos do país: eventos adversos como o rompimento de barragem em Mariana/MG (2015), rompimento da barragem em Brumadinho/MG (2019), desmatamentos constantes na Amazônia (2019 e 2020) e queimadas no Pantanal (2020) impactam diretamente a qualidade ambiental e de vida destes territórios, os inviabilizando enquanto ativos turísticos. Mesmo neste cenário, não houve avanços na discussão desta pauta no Ministério do Turismo até 2020, de modo a salvaguardar ativos naturais e culturais.

A pandemia é mais um momento sem precedentes. O desafio reside em estabelecer uma gestão permanente focada no aprendizado contínuo, em que gestão de riscos, vulnerabilidades, crises e desastres sejam aspectos efetivamente incorporados. A gestão baseada no conhecimento acompanha a complexidade do setor turístico amparada numa leitura global-local e que considera o caos como um fenômeno também permanente no mundo contemporâneo: ou seja, pequenos eventos ou variações numa determinada condição impactam a atividade turística em proporções inimagináveis. 

Fica evidente para os governos que não basta ter resposta imediata, mas saber lidar com este tipo de situação de modo sistêmico em função dos impactos negativos sem precedentes e o potencial de novas crises, riscos e desastres de todas as ordens serem cada vez mais constantes no mundo.

Investir em tecnologia e fortalecer habilidades para lidar com informações, ler e comunicar claramente a realidade tornou-se essencial. Solucionar aspectos de base institucional-administrativa, como ter estrutura e um bom planejamento territorial integrado do turismo, é urgente no caso do Brasil. Deve-se fortalecer a consolidação de políticas públicas no Brasil, principalmente através do resgate de discussões sobre os papéis e funções das instituições ligadas à governança do setor; cumprimento das leis e normativas estabelecidas pelo governo federal e um olhar estratégico que abarque de modo mais contundente as respostas aos ODS, a visão integrada territorial que esteja focada, acima de tudo, nas pessoas.

É preciso fortalecer o capital humano para que este processo se desenvolva de modo a abarcar um cenário de maiores incertezas. A inteligência emocional deve ser trabalhada, para que tenhamos lideranças, profissionais e pessoas aptas a lidar com um sistema tão complexo e que sofre adaptações constantes. A carga emocional para os profissionais é muito elevada, em especial em situação de crises e desastres. Faz toda a diferença ter um sistema de apoio que reconheça o peso desta instabilidade e fortaleça processos e ambientes que reconhecem, respeitem e incentivem o controle emocional, a motivação, a empatia e relações interpessoais de qualidade.

Ainda que possua o importante papel de apoiar e fomentar o mercado, principalmente no caso de um país em desenvolvimento que necessita ampliar sua competitividade no turismo, o Estado não pode perder de vista seus objetivos de garantir a qualidade de vida das pessoas e a salvaguarda de seus ativos naturais e culturais, constituindo assim, as bases para um turismo mais resiliente – a palavra da “vez” que deve continuar acompanhando o turismo nos próximos anos.

¹Para a Copa Fifa 2014, foi criada uma Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos ligada ao Ministério da Justiça e uma das maiores preocupações do Ministério de Defesa, à época, era a possibilidade de um atentado terrorista, o que culminou um planejamento para as Olimpíadas de 2016, com avaliações de risco. Disponível em: http://arquivo.esporte.gov.br/index.php/noticias/24-lista-noticias/49440-seminario-de-le. Acesso em 10 de outubro de 2020.

 

Referências bibliográficas

Epler Wood, M.,Milstein, M., Ahamed-Broadhurst, K., 2019. Destinations at Risk: The Invisible Burden of Tourism. The Travel Foundation. Disponível em: https://www.thetravelfoundation.org.uk/invisible-burden/. Acesso em: 01 de janeiro de 2021.

Sagi, Luciana C.; Solha, Karina T. Gestão de crises de destinos turísticos sob a perspectiva de organismos internacionais e de apoio multilaterais: reverberações na gestão pública do turismo do Brasil, em nível federal. Caderno de resumos [do] I Seminário Acadêmico Turismo e Inovação “Os impactos da Covid-19 e a recuperação da atividade do turismo”, 23 e 24 de novembro de 2020. / Organização: Paulo Henrique Assis Feitosa. – São Paulo: ECA/USP, 2020. Disponível em http://www2.eca.usp.br/seminariosdeturismo/wp-content/uploads/2021/02/Caderno-Resumos-Programacao_Seminario-Turismo-Inovacao_0_final.pdf. Acesso em: 01 de janeiro de 2021.

 

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Luciana Sagi

Consultora especialista em desenvolvimento territorial do turismo e áreas protegidas, com 20 anos de experiência no Brasil, Cabo Verde e Moçambique. Atuou em mais de 60 projetos com instituições como BID, Banco Mundial, WWF, PNUD, Instituto Ekos, FIA, SEBRAE e o setor público. Foi Secretária Adjunta de Turismo em Maceió/AL. Turismóloga, Mestre em Hospitalidade e Doutoranda em Ciências pela USP. Pesquisadora do CETES/USP. Sobre o Turismo Spot: É uma honra colaborar com o Turismo Spot! Considero este um canal único para todos aqueles que atuam com a gestão de territórios turísticos. Linda iniciativa, que compartilha rico conhecimento, de fácil acesso e totalmente gratuito. É fundamental termos espaços como este, que elevam discussões e reflexões sobre gestão, com conteúdos produzidos por profissionais altamente comprometidos e que lidam com os desafios do dia a dia de destinos turísticos.