Um pitch no Web Summit e o dilema do “sangrar”
Estava num dos mais grandiosos eventos internacionais de tecnologia, o Web Summit, no Rio. Ao lado de três sócios, apresentávamos a nossa recém-lançada startup de turismo. Era uma mistura de entusiasmo, ansiedade e aquela adrenalina típica do universo tech — pitches cronometrados e jurados ávidos por “disrupção”.
No meio das conversas naqueles amplos salões do Riocentro, o amigo startupeiro de uma das sócias comentou, com a naturalidade de quem já internalizou o mantra:
“Pra startup receber investimento, pra fazer acontecer, precisa sangrar.”
Aquilo reverberou forte. Na hora pensei algo como: “A essa altura da minha vida, não quero mais sangrar. E, mais do que isso, nem acredito que esse deva ser o caminho.”
Uma trajetória comprometida com o turismo e os territórios
Sempre fui um apaixonado pelo turismo. É um tema que me acompanha há décadas. Meu TCC em Administração foi sobre mochileiros — tema pouco explorado na época — e acabou sendo premiado pela EBAPE/FGV, com direito a entrega feita pelo então ministro do Turismo, Walfrido dos Mares Guia.
Depois, me aprofundei na área com uma pós-graduação em Docência do Turismo na UnB. E não foi apenas teoria: ao longo da vida, escrevi diversas reportagens e viajei por todos os Estados do Brasil e por quase cem países. O turismo nunca deixou de me acompanhar — como campo de estudo, paixão pessoal e vetor de desenvolvimento humano e local.
A startup: do sonho à realidade, com outra lógica
Lá atrás, com uma amiga, sonhamos o Quikuti. A ideia era potente: ressignificar espaços urbanos — como a região da Luz, em São Paulo — com roteiros autorais e hospedagens comunitárias, gerando renda para quem vivia nesses territórios. Não saiu do papel, mas a semente ficou.
Anos depois, durante uma reunião-caminhada pelo parque Ibirapuera, outra amiga trouxe a ideia de uma plataforma digital para viajantes que buscavam experiências fora do óbvio. Ela vinha conversando com outra pessoa, que estava desenvolvendo algo semelhante.
Resolvemos unir forças, habilidades e propósitos — e assim nasceu nossa startup.
Foi um momento especial.
No ano seguinte àquele Web Summit do “sangrar”, voltamos ao mesmo evento. Mas, dessa vez, com um prêmio na bagagem — concedido pela Embratur, com participação de ninguém menos que Gilberto Gil. Um reconhecimento bonito, simbólico, de um sonho que estava ganhando forma.
Conflito de valores: startup versus impacto social
Tínhamos muita paixão, conhecimento de causa e disposição para inovar. Mas não tínhamos o capital financeiro necessário para dar os passos seguintes — e, para conquistá-lo, precisaríamos entrar na lógica dos investidores: métricas específicas, expectativas de escala rápida, cultura de aceleração e uma visão de mundo muito distinta da nossa.
Foi aí que o conflito se intensificou.
Não era apenas uma questão técnica para mim — sobre ter ou não desenvolvedores ou tempo integral. Era uma questão mais profunda: de valores, de paradigmas, de visão de mundo.
Dobrar-me a esse universo implicaria adotar lógicas contra as quais trabalho atualmente: o crescimento a qualquer custo, a “validação” pela dor, o sacrifício pessoal glorificado como requisito para o sucesso (e revestido de uma glamourização prepotente muito presente no setor tech). A romantização do sofrimento como método. O tal do “sangrar”.
Percebi que meu lugar era outro.
Que meu caminho, embora cruzasse o turismo, precisava passar por outras paisagens — aquelas onde ética, transformação social e cuidado com os territórios não fossem acessórios, mas fundamentos.
Recusar o modelo não é desistir do sonho
Foi nesse período que resgatei algo que sempre acreditei: falar sobre erros, como faço aqui e agora, é tão importante quanto falar sobre acertos. E que o fracasso, por mais que doa, tem uma função social. Por isso mesmo, fui um dos que trouxeram anos atrás para o Brasil o movimento FuckUp Nights, que reúne pessoas para contar suas histórias de fracasso com leveza, vulnerabilidade e sentido.
Fracassar humaniza. Aproxima.
É no tropeço que muitas vezes nos reencontramos com o que realmente importa.
Essa experiência — de empreender uma startup que, durante minha participação, não decolou — me ensinou muito. Me mostrou que a paixão por um setor não é suficiente se o modelo de negócio que o sustenta exige que a gente abra mão de quem é.
E tá tudo bem.
Às vezes, recuar de um projeto é, na verdade, um avanço na trajetória da nossa coerência.
Turismo com propósito: um reencontro com o que importa
Hoje, sigo nutrindo meu amor pelo turismo — mas de outro jeito. Um jeito que me faz mais sentido, mais inteiro.
Por exemplo: fui pesquisador e coautor do estudo Investimento Social Privado em Turismo, que analisa como o investimento social privado pode atuar estrategicamente no setor turístico, promovendo desenvolvimento local, cuidado com os territórios, geração de renda e pertencimento comunitário. Um trabalho que uniu os dois mundos que mais me mobilizam: a filantropia institucional e o turismo como potência de transformação.
Não é sobre desistir de um sonho.
É sobre encontrar novos caminhos para vivê-lo — de forma mais ética, sustentável e comprometida com o impacto que queremos deixar no mundo.
E o melhor: sem precisar sangrar.